Opinião

“De modelo a toda terra”

Por Lauro M Demenech
Professor de Psicologia da Furg
[email protected]

Conta-se uma história em que foi perguntado à Margaret Mead, uma importante antropóloga norte-americana, quais eram as primeiras evidências do surgimento da civilização. A pesquisadora respondeu que é o achado arqueológico de um fêmur humano com uma fratura cicatrizada, datado de mais de 15 mil anos. Ela explicou que, em um ambiente primitivo, para uma pessoa sobreviver com um osso quebrado, ela necessariamente deve ter recebido cuidados por um longo período de tempo até que pudesse se recuperar. Outros seres humanos devem ter-lhe provido abrigo, proteção, comida e água. Ou seja, o primeiro sinal de civilização seria o cuidado.

Podemos observar dois fenômenos marcantes no desenvolvimento da história da humanidade: competição e cooperação. Sem competição, os organismos talvez nunca tivessem desenvolvido nenhuma habilidade física ou cognitiva significativa, tendo sido esse fator, sim, uma das forças importantes por trás da teoria da evolução de Darwin. Somos dotados de agressividade para ameaçar, atacar ou nos defender em situações de crise. No entanto, a capacidade de cooperação tem sido identificada como uma das principais características que explicam o sucesso evolutivo de nossa espécie. Desde tempos imemoriais, seres humanos cooperam entre si, aumentando suas chances de sobreviver em um ambiente hostil. Na verdade, um dos aspectos que nos diferencia fundamentalmente de outros animais inteligentes é a capacidade de cooperar em larguíssima escala.

Enquanto escrevo esse texto, o Rio Grande do Sul enfrenta a sua maior crise climática contemporânea. Você pode não ter percebido, mas se você teve que sair da sua casa ou viajar para outra cidade para não correr risco, você é um refugiado climático. Quando as coisas acontecem do outro lado do mundo, podemos tentar compreender a dor e o sofrimento. No entanto, quando a água da enchente bate à nossa porta, sentimos o medo e a ansiedade de estarmos em risco iminente não só por nós, mas também pelas pessoas que amamos e com as quais nos importamos. Aliás, nos vemos mais uma vez de joelhos, tendo passado apenas quatro anos desde o início da pandemia de Covid-19. O que aprendemos de lá para cá?

Nesses momentos, somos noticiados sobre fatos terríveis: pessoas assaltando os vulneráveis, cobrança de valores exorbitantes por mantimentos básicos, e muitos outros sinais de individualismo e competição. Só o mais forte sobrevive? Não! Desde o início dessa tragédia tenho me lembrado, com muita frequência, do primeiro sinal de civilização. Observamos uma catástrofe sem precedentes, marcada por perdas materiais e imateriais e, principalmente, de vidas. Por outro lado, também estamos vivenciando o ser humano no que ele tem de melhor: a solidariedade, o cuidado, a doação de tempo e de recursos, a preocupação com os outros e com os animais, entre outras tantas manifestações de generosidade. A cooperação e a solidariedade preponderam.

Quando vejo tanta mobilização para ajudar, não consigo deixar de pensar que as pessoas que estão oferecendo auxílio também o estão fazendo para encontrar alguma forma de escoar sua própria dor. Essa dor é sentida não só por imaginar que poderia ter acontecido algo pior consigo, mas por genuinamente sentir o sofrimento daquele indivíduo que está em sua frente. Que bom que, em momentos como esse, podemos honrar nossas raízes empáticas e altruístas! Que não vejam só nossas lágrimas, mas o nosso testemunho de civilidade. E que ele sirva de modelo a toda a terra!​

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

Anterior

Não existe solução mágica

Próximo

Além do necessário

Deixe seu comentário